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Geração Netflix
de Gisele C. Laranjeira
Já vivemos a Geração Coca-Cola, questionadores capitalistas com ideais socialistas, época dos primeiros computadores, do rock nacional estourando, quem não se recorda da exorbitante década de 1980? Dez anos depois vivemos a Geração dos Caras Pintadas, politizados (na marra), que brigou e muito, quebrou tabus, destruiu barreiras e redefiniu nosso jeito de pensar sobre economia e participação popular na política. Bom, pelo menos deveríamos ter repensado tudo isso... Tudo bem, porque em 2000, ficamos uma década esperando o fim do mundo, que nunca veio – frustrante não? - e enquanto o meteoro não vinha nem Jesus na causa, criamos toda uma ansiedade em viver absolutamente tudo ao máximo e ao mesmo tempo. Era o auge do nosso pragmatismo! Responder "como tá a vida?" "ih, corrida" era um status de superioridade, e não ter tempo livre era sinônimo de realmente ser feliz.
Mas será que é mesmo?
Honestamente eu acredito começamos a entender que não. Hoje temos a Geração Netflix, uma geração nerd, que curte ler muito e ficar em casa vendo série. E sério, isso é muito legal.
"Ah mas essa geração só lê besteira, esses livros de hoje..." Não importa. Desde J. K. Rowling e a série Crepúsculo, as crianças e os adolescentes estão lendo mais. Você pode não gostar, você pode achar que são produtos medíocres, mas fizeram seu papel: os livros voltaram a ser um meio importante de comunicação e de aprendizado. Numa era onde toda informação vem fácil pelo clique da internet, muitas editoras temeram que fosse o fim dos livros e jornais impressos. Mas, não está sendo bem assim.
Se por um lado temos visto que "cheirinho de livro novo" é uma nova moda, por outro lado a maior fonte de entretenimento estão nas séries. E convenhamos, a nova rainha desse continente é a Netflix. Segundo artigo da Mundo Estranho (leia aqui) a primeira série de TV foi "Pinwright's Progress", Estrelada pelo britânico James Hayte em novembro de 1946 e durou apenas uma temporada de dez episódios, com 30 minutos de duração, registrados num teatro de Londres e transmitidos ao vivo pelo canal BBC. De lá pra cá muita coisa mudou. Na década de 50 o diretor William Asher ficou consagrado como "o criador do sitcom", um formato de série de comédia com platéia, como "I Love Lucy". Em 1966 estreou "Star Trek", um sucesso de ficção científica e com efeitos visuais novos para época, considerada hoje a série com maior número de spin-offs pelo Guinness. Outra série que merece destaque é Dr. Who, talvez a com maior número de temporadas (26), que estreou em 1963 e faz sucesso até hoje.
O fato é que as séries não são nenhuma novidade, mas o modo como assistimos as séries mudou bastante. Se antes era preciso guardar o dia e o horário da sua série favorita para não perder um episódio na tv, logo com a internet surgiram os primeiros sites e programas para "baixar" episódios - até temporadas inteiras! Com o desenvolvimento e distribuição de pacotes de internet com velocidades cada vez maiores, o acesso à seriados pela TV aberta e paga foram dando espaço à pirataria (descarada mesmo). Afinal, ter acesso pela internet a qualquer momento era um conceito muito mais viável nos dias de hoje – onde temos que trabalhar, estudar, pegar trânsito infernal, etc! - do que esperar aquela horinha toda semana para ver sua série favorita.
Há quem goste desse velho estilo, nada contra! Mas é preciso aceitar que a praticidade sempre foi um chamariz para a atenção humana. E foi sabendo disso, que a Netflix agarrou de vez nossos corações. Com um acervo modesto de séries famosas e conteúdos originais de alta qualidade, a Neflix nos deu a liberdade de escolher o que assistir e quando assistir. E fez mais: supriu a ansiedade da geração pós-apocalipse-que-nunca-veio, porque você agora pode assistir uma temporada inteirinha de uma vez só, se quiser, porque ela já está disponível no site. Não precisa esperar uma semana nem 3 meses para saber o fim da temporada – tá ali, é só ter tempo e assistir tudo de uma vez.
Opa, tudo de uma vez? Claro que gostamos, queremos tudo ao extremo, o mais intenso possível!
Enquanto isso, algumas pesquisas (leia aqui e aqui) e começaram a apontar que o hábito de ficar horas e horas em casa maratonando suas séries favoritas pode indicar depressão. E ninguém gosta da palavra depressão, e com toda razão. Mas existe uma enorme diferença entre depressão e simplesmente deprimir.
Primeiro, vamos entender que todo mundo tem algum tipo de depressão, em algum momento da vida. Não to falando em depressão crônica, que inibe a pessoa a conviver com os amigos, com a família, que não permite sequer que a pessoa trabalhe ou saia de casa. Trocando em miúdos, se você troca sempre o churrasco na casa da tia, o encontro dos amigos e falta no trabalho pra ficar vendo série, sim, essa é uma depressão patológica.
Mas existe um momento na vida de todo mundo que, de repente, a gente quer ficar quieto. Dar uma pausada no mundo, não conversar muito. A gente sai, trabalha, vai nos aniversários dos primos, vai jogar boliche com os amigos, vida segue normal... mas marca aquele domingo só pra ficar em casa, ou aquela sexta pra dar uma espairecida e ler um livro. Troca um dia de cerveja pra ficar em casa. E tudo bem, esse encolhimento de energia, algo que nos afasta do mundo externo e nos joga em nós mesmos, é uma coisa boa.
Quando lemos as estórias de heróis nas mitologias e nos contos de fadas existe uma coisa em comum: todo herói deprime. Campbell, famoso mitólogo e historiador, fala que na trajetória de todo herói, existe um momento para a queda. E essa queda é importante, pois é quando o herói morre ou viaja para uma forma de submundo. Em outras palavras, todo herói, antes de ser um verdadeiro herói e vencer sua batalha, deprime. Ele precisa rever seu papel, seus valores, enfrentar seus demônios, reconhecer quem sãos seus pais, lembrar sua história, perder seu poder ou tomar aquela bela surra que lhe tira toda a fé em si mesmo. Ele fica um caco, todo quebrado por dentro e por fora. Sem energia, o herói se volta para si mesmo, e isso é o processo de regressão de libido.
Essa regressão de energia, esse chamado “para dentro” – ficar quietinho, na sua, vendo suas séries ou lendo seus livros, é uma forma de contato com o que está dentro de nós, essa busca pela força interna. Quando nos empolgamos com uma estória – seja um filme, série, livro, o que for, na verdade nos identificamos com quela estória que, simbolicamente, está falando sobre alguma coisa sobre nós, sobre a nossa vida. Quem nunca se sentiu o próprio Homem Aranha se ferrando com provas, namorada e salvar a cidade? – porque às vezes também somos exigidos até os ossos em nossos afazeres e deveres. Quem nunca sentiu a solidão do Batman? Ou aquela sensação ardida de só machucar as pessoas que amamos, como o Wolverine? Ninguém aqui tem superpoderes, mas temos esses super sentimentos, que atravessam nossas vidas do mesmo jeito que qualquer outro personagem.
E isso me fez pensar sobre essa nova dinâmica coletiva... Agora, lembra o que eu disse que na década de 2010, éramos um bando de ansiosos vivendo tudo ao extremo? A extroversão máxima de toda energia, de toda libido, voltada em viver o mundo enquanto ele ainda existisse! Pois é. Jung falava de uma coisinha chamada “enantiodromia”, um conceito que veio do filósofo Heráclito, que previa que uma grande força em uma direção gera uma força no sentido oposto. Para a psicologia de Jung, isso quer dizer que quando realmente exageramos nossa libido em uma direção – ser muito extrovertido, ser muito calmo, ser muito carinhoso – essa energia psíquica tende a, qualquer momento, a correr na direção oposta e com a mesma força – ser muito tímido, muito irritado, muito agressivo. Se nós tivemos uma década inteira voltada a sermos extrovertidos e bom vivants, não faria sentido agora corrermos na direção oposta? Sermos mais tolhidos, mais introvertidos, mais caseiros.
Além disso, estamos deprimidos! O Brasil é um país em plena crise política e financeira, o que já desencadeia por si só fatores de alto risco à saúde mental: problemas financeiros, desemprego, péssimas condições de trabalho (devido à alta taxa de desemprego), sistema de saúde precário (e sem o menor foco na saúde mental), pouco lazer e o sistema de educação bastante prejudicado. É um prato cheio para um povo deprimido, frustrado e, por consequência, muito revoltado.
Se o Brasil fosse um indivíduo, hoje certamente seria uma pessoa deprimida. Que tem sua política escancarada com corrupção - e que está ainda aprendendo a lidar de verdade com ela. Um país que começou agora a falar em diversidade cultural, racial, sexual, religiosa. Que começou há pouquíssimo tempo a discutir seus próprios padrões e tabus, a questionar a legitimidade de suas lideranças, a reconhecer que o problema acima de tudo é cultural, é do “nosso jeitinho”, não são os outros. O problema tá aqui dentro, tá na gente, na nossa forma de pensar e agir. E quando finalmente alcançamos essa reflexão, esse país, carnavalesco sempre, finalmente, deprimiu.
As estórias nos ajudam a nos encontrar, a nos conhecer. Quando deprimimos, estamos recontando nossas estórias interiores e buscando uma compreensão maior. Falamos de diversidade com Sense8. Falamos de justiça e vilania com Breaking Bad, How to Get Away with Murder. Falamos de política com House of Cards. Falamos sobre amor em Love. Falamos sobre adolescência e suicídio em 13 Reasons Why. Falamos de heróis com a Marvel, e a DC, o lado bom e o lado negro de ser herói e salvar – principalmente – a si mesmo.
Então quando as pesquisas falam que o Brasil é um dos países que mais assiste Netflix; e que esse traço peculiar pode indicar depressão, eu fico feliz. Fico realmente feliz que finalmente o Brasil deprima um pouquinho, se embale na tristeza de si mesmo, de sua realidade. Que use as estórias para rever seus valores, seus trejeitos, defeitos, qualidades e potências. Deprime mesmo, chora mesmo! Afunda nesse balde de sorvete e enche a boca: "dar um jeitinho não é legal, é trapaça. Preciso ser melhor que isso".
Podemos ser melhores. E quem sabe, inspirados em nossos heróis, vamos saber cair e nos levantar como uma nação melhor e mais fortalecida?