top of page

A outra das cinzas

de Gisele C. Laranjeira (em parceria com Dannilo Autorino)

Cendres Ella, Cinderella!

      Como já diria Rumpelstiltskin, nomes têm poder. Nomear é dar contorno e preenchimento, ao mesmo tempo que se dá um limite, se infla de determina potência aquele objeto. Damos determinada cor, sabor, personalidade àquilo que nomeamos. E quando se trata de contos de fadas, o nome não apenas define como é nossa estória, mas o que existe por trás dela.

      No conto original, chamado La gatta cenerentola (“A gata borralheira”), vemos a presença do nome associado ao borralho, que para quem não sabe, é o nome das cinzas do fogão à lenha. Muitas versões vieram depois, mas de todas, para mim, o filme de 2015 foi o mais profundamente repleto de simbologia. E por essa razão, preferi utilizá-lo para nossa análise.

      Buscando o significado do nome "Ella", encontrei a seguinte definição: Ella: Significa “outra”. É a forma normanda do nome germânico Alia, uma abreviação dos nomes que continham o elemento ali, que quer dizer “outro”. O nome foi introduzido pelos normandos na Inglaterra e utilizado até o século XIV, sendo revivido mais tarde no século XIX.

      "A outra das cinzas"... me soa quase como o vice treco do subtroço, do sábio Mario Cortela. Coberta de sujeira, Ella nem pode ser reconhecida como alguém em si mesma, é a "outra", aquela lá, alguém que sabemos que existe mas não reconhecemos, de fato, a existência. E quando falamos em cinzas, pensamos naquilo que é o passado do que já foi combustível, já foi potência e agora é apenas sujeira, apenas reminiscência. A cinza em si não serve para nada mais, por isso quando uma situação realmente se encerra dizemos: agora restaram apenas cinzas. As cinzas não podem ser usadas de combustível na lareira, não são bonitas nem cheirosas para enfeitar, não podemos usar nem para adubar a terra. A cinza é o retrato daquilo que se esgotou ao máximo - e no conto, quem se esgota ao máximo é "a outra", aquela lá, que de tão desvitalizada nem personalidade mais ela exprime.

      Hoje, compreendo Cinderela como um conto sobre resistir e reencontrar sua essência, sua força, seu combustível, mesmo depois que se chega ao ponto das cinzas. Claro, essa é somente uma possibilidade de interpretação, mas para que o leitor entenda melhor essa visão do conto, vamos conhecer os personagens que participam dessa trajetória.

 

  1. Os personagens e seus papéis

 

Ella – Cinderela

                Filha de pais amorosos e com bom status social, Ella teve uma infância plena, feliz e bem amada. Vamos pensar que ela teve toda a estrutura parental para ser uma pessoa boa, feliz e capaz de se sentir completa consigo mesma. Por outro lado (sempre tem!) percebemos que ela vivia nesse espaço fechado de amor e felicidade, e pouco ou nenhum contato com o mundo lá fora e suas mazelas. Isso não a torna insensível (Ella é bem empática, como percebemos todo o conto), mas a torna extremamente imatura e inocente.

                No tarot, podemos dizer que Ella é o Louco, a figura da criança gentil, alegre, amiga dos animais (o Louco esta sempre rodeado de animais também) e sem medos (be brave and be kind, quem não lembra esse refrão?). Mas vejam, sua imaturidade e despreparo para o mundo levam o louco para o abismo – e Ella cai nesse abismo ao ser tão inocente diante dos pedidos da madrasta e das irmãs.

                Após a perda da mãe e do pai, Ella não tinha maturidade para se defender do mundo e de pessoas “não tão gentis”. Podemos ver como isso acontece com filhos que são superprotegidos, à nossa volta: não conseguem lidar com frustrações no trabalho ou na escola, caem em roubos ou promoções descabidas da internet, acreditam em tudo que lêem ou falam, não suspeitam das pessoas, têm relacionamento abusivos com amigos e namorados... Enfim. Se por um lado precisamos sim, ser eternas crianças com esperança e a capacidade de nos aventurar, de olhar para o outro com gentileza e ir em frente; por outro, o excesso dessa ausência de cautela poderá nos levar à ruína. É disso que se trata o Louco, e é essa a nova Ella, no começo do conto.

                Sua trajetória é aprender a ser gentil sim, mas também ser gentil com ela mesma e aprender que há maldade no mundo, por isso, precisamos saber nos preservar e nos manter a salvo dos perigos.

 

Os pais de Cinderela

                Pouco vemos da mãe da Cinderela, mas o filme deixa bastante claro de ser uma pessoa gentil, amorosa, boa mãe, boa esposa, enfim, aquela mulher tudo de bom, ne? Só que essa face da Grande Mãe amorosa, que acolhe e dá tudo, tem seu lado negativo. Prestes a morrer, ela pede que Ella faça uma promessa: seja corajosa e seja gentil. Tem coisa mais amarra-vida que uma promessa pra mãe que vai morrer?! Claro que essa mãe, jamais, pensaria no que sua atitude iria desencadear. Assim como essas grandes mães que dão tudo pros filhos, todo afeto, amor, carinho e proteção, acham que estão cuidando de suas crias da melhor forma - e estão, se o mundo continuasse a ser no colo dessa mãe. A mãe de Ella não prepara a filha para o mundo, e essa é a principalmente característica da Boa Mãe: ela é tão boa, que os filhos nunca se desvencilham dela.

                Por que Cinderela passa por tanta degradação e humilhações? Pela casa que a mãe amava, certo? Para ser ainda a filha dessa mãe linda, bondosa, perfeita, mesmo que a mãe já não estivesse lá. Ella permanece presa à mãe, nesse vínculo quase simbiótico – permanecer na casa da mãe a qualquer custo. Se formos explorar a simbologia dessa casa, podemos imaginar que a casa representa o colo da mãe, o útero da mãe, o conforto de permanecer criança e nunca crescer. Talvez seja inconscientemente, mas Ella permanece presa em sua eterna infância, e vai pagar qualquer preço para manter esse status.

                Quantos de nós não mantemos nossa infância presa a nós, por mais custoso que seja? Ser criança, inocente, alegre, viver nesse colo sereno da Mãe eterna (arquetípica, não real) é muito gostoso! Quem em sã consciência quer sair disso? E é difícil, penoso, mas só através desse rompimento podemos crescer, evoluir e nos tonarmos indivíduos independentes; ou seja, nos tornarmos nós mesmos.

                O pai de Cinderela foi uma excelente mãe. E um desastre como pai.

                Como assim?! Ele era amoroso, cuidadoso, atencioso... sim, ele foi uma ótima mãe para a nossa heroína. E cumpria o papel paterno de provedor familiar, mas um pai é a referência parental de mundo externo. Estamos falando em termos simbólicos e arquetípicos, ok? Não é uma discussão de gênero – um homem pode ser maternal e uma mulher, paternal. A questão é que, a criança, quando se desenvolve, precisa das duas funções: mãe e pai. E não é tão relevante assim quem vai realizar esses papéis: Mãe é quem acolhe, cuida, ampara (seja mãe, o pai, um tio, uma avó, um professor, não tem a ver com gênero, tem a ver com comportamento); a função do Pai é dar limites, expor as regras e ensinar à criança como o mundo funciona (tem muita mãe sendo pai por aí, não é?).

                Enfim, o pai de Ella era distante, até por causa de sua profissão, e do pouco que vemos nas cenas de sua infância, ele nada dizia para a filha sobre como o mundo funcionava fora das propriedades da família. Ele não ensinou Ella sobre dinheiro e trabalho (as pessoas recebem pagamento pelo seu trabalho, Cindy!), sobre a política do país (ela cresce sem saber nada do príncipe, a ponto de não reconhecer suas roupas), sobre pessoas com más intenções, sobre cuidar de si mesma. Com essa falha na função paternal, Ella cresce acreditando que o mundo será um reflexo dela mesma e sua vontade: ser gentil e bondosa e todos serão gentis e bondosos com você.

                Epa! Mas, a moral do filme não é essa?! Não, nem um pouco. Os contos de fadas não são instrumentos de alienação, pelo contrário, eles trazem lições que se aplicam a qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, porque o ser humano possui em essência algumas características comuns, próprios da sua natureza. A meu ver, a moral do filme é: seja gentil apesar dos outros não serem. É preciso saber que o mundo não é um lugar gentil, e é exatamente por isso que você deve ter coragem para ser diferente!

                Mas sem excesso, faz favor! Ninguém disse: “Ella, seja servil e aceite tudo das pessoas”. Isso não é gentileza, isso é passividade, falta de forças para lutar pelo próprio destino, falta de amor próprio. É a ausência da autoconfiança que faz puxar as rédeas da vida para si mesmo, e quem ensina essa força para lutar é a figura simbólica do Pai, é o aspecto masculino que existe em todos e todas nós. Por isso, mais adiante, veremos que a presença de um príncipe (aspecto masculino) na estória vem resgatar essas lições não aprendidas antes.

                Bom, se não bastasse a superproteção maternal desse pai, ele ainda se casa com uma pessoa... difícil (fui gentil agora, hein!). Não suportando a solidão e a perda da esposa, o pai se casa com uma viúva que já tinha 2 filhas do casamento anterior. Podemos somente imaginar se ele não tinha ou não alguma consciência do temperamento da nova esposa: ela fora casada com um importante mercador, vivia no luxo e gostava de festas. Porém, depois do casamento ele se dedicou ainda mais ao trabalho (talvez até para dar conta dos luxos que a nova família exigia?), tornou-se mais ausente em sua casa (provavelmente, para evitar lidar com a dor da perda) e deixou a filha aos descuidados da madrasta. Se já falamos que Ella começa sua estória como o Louco, inocente e imaturo, o pai dela é o próprio Carro, mas em seu pólo mais negativo: fugindo desenfreadamente de seus problemas. Ele foge da solidão e da dor casando-se com uma mulher totalmente diferente de seu estilo de vida; então, ele foge da realidade desse casamento se jogando no trabalho, o que acaba consumindo suas forças até que ele adoece.

Com sua morte, Ella é direcionada a uma nova realidade e arrancada do seu mundo confortável e infantil.

 

A madrasta, Lady Tremaine

                “Era uma vez uma linda e jovem garota que casou por amor. E ela teve duas adoráveis filhas. Tudo estava bem. Mas, um dia, seu marido, a luz de sua vida, morreu. Depois, ela se casou em prol da segurança de suas filhas. Mas este homem, também, foi tirado dela. E ela foi condenada a olhar todos os dias para a amada criança dele. Ela tinha esperanças de casar uma de suas lindas e estúpidas filhas com o príncipe. Mas a cabeça dele virou do avesso por uma garota com sapatos de vidro. E então, eu vivi infeliz para sempre. Minha estória parece ter terminado”.

                A grande vilã do conto é, sem dúvida, a madrasta de Cinderela. Ficamos com muito ódio dela por maltratar a menina, com seu jeito arrogante e ganancioso, com sua falta de amor e até com sua frieza com as próprias filhas. O que não reparamos, logo de cara, é que Lady Tremaine é um aviso. Ela é, exatamente, o reflexo de uma pessoa que não teve coragem para ser gentil e, diante das dificuldades da vida, tornou-se coberta de ódio, rancor e amargura.

                Vamos praticar um pouco de empatia e lembrar que ela era viúva, antes de se casar com o pai de Cinderela. Além de perder o grande amor de sua vida, ela tinha duas filhas para sustentar – naquela época, as mulheres não podiam trabalhar, a não ser como empregadas domésticas. Pensando em dar melhores condições de vida para as filhas, ela se casou com um mercador viúvo... Oba! Alguém para compartilhar sua dor! Só que esse novo marido não havia superado a perda da primeira esposa e, para ajudar, tinha uma filha que em tudo lembrava essa mulher. Imagine viver um casamento assombrado pela esposa perfeita e morta do seu marido? Como competir com os mortos, tão lindamente idealizados em nossas memórias? Além de lidar com sua dor e luto sozinha, Lady Tremaine se viu em uma competição que jamais poderia vencer. Mas, havia um jeito de se vingar dessa doce mãe e esposa tão perfeita: através da filha, inocente e indefesa em suas mãos. E assim ela fez e muito bem!

                A madrasta traz um gato para a casa, chamado Lúcifer. Simbolicamente, os animais nos contos de fadas traduzem os aspectos mais instintivos do personagem, ou seja, conteúdos dessa personalidade que ainda estão inconscientes e aparecem em suas atitudes de forma imatura, desajustada ou bruta. Em suma, a pessoa não percebe que está agindo desse ou daquele jeito! Lúcifer é o bíblico anjo caído, que denota bem quem é nossa vilã, pois Lady Tremaine cede aos apelos mais nocivos do seu coração: ganância, vingança, inveja, ciúmes e, principalmente, ingratidão. Para ela, a vida lhe roubou toda felicidade e por isso, o destino deve a ela. Por isso, ela tem o direito de fazer mal às pessoas, de manipular e agir como quiser para se dar bem. Ela não é grata por ter um segundo marido carinhoso; ela tem inveja e ciúmes que superam o amor (se é que existe algum). Ela trata as filhas como ferramentas para o próprio sucesso, e não como presentes deixados pelo primeiro marido, tão amado. Ela se esquece do amor, da gratidão e da gentileza, cedendo ao ódio e a cobiça.

              Mas não foi a vida que fez Lady Tremaine uma pessoa ruim – a vida maltrata um monte de gente por aí, não é? Quem fez Lady Tremaine ser quem é foram suas próprias escolhas, quando ela decidiu não ter a coragem de seguir acreditando no amor, e passou a viver em função do egoísmo, ela escreve para si mesma um destino vazio de afeto e repleto de frustrações.

 

As irmãs Anastacia e Drizella

                Parece uma constante essas personagens “sem personalidade” povoando nossos contos de fadas atualizados! Como o Dannilo já descreveu brilhantemente em seu artigo de “A bela e fera”, essas personagens não possuem uma identidade própria, mas vão reproduzindo padrões de comportamento ditados pela sociedade ou pela tradição familiar. No caso, as duas se orientam pela mãe, Lady Tremaine, e fazem tudo que ela diz.

              Nos mitos, encontramos essas personagens em forma de “ninfas”. As ninfas das mitologias, principalmente grega e nórdica, são entidades femininas da natureza, lindas, agradáveis, e tomam a forma que melhor agrada aos olhos de quem as vê. São geralmente associadas aos elemento água e ar – que não possuem forma fixa. A mais famosa, na mitologia grega, é a “Eco”, apaixonada por Narciso (símbolo do amor narcisista, ou seja, somente por si mesmo). Eco é uma ninfa que, após desagradar a deusa Hera (deusa Mãe e patrona da família), recebe a maldição de apenas repetir o que os outros dizem. Perfeito para alguém apaixonada por um narcisista, não? E essa relação é mútua: toda Eco busca um Narciso, assim como Narciso se aproxima de uma ou mais Ecos, que lhe sustentam esse ego tão inflado e cheio de amor próprio.

               Se temos uma mãe narcisista como Lady Tremaine, temos duas filhas “Eco”, ninfas etéreas, sem forma definida (sem personalidade própria), que ecoam as vontades e a forma de pensar da mãe. Por isso, no fundo, concordo com a Cinderela no filme: é de dar pena que as duas personagens sejam tão frívolas e inconscientes de suas próprias potencialidades. Também é muito difícil sair de uma relação abusiva com um narcisista, demanda muita força de vontade e, sem ajuda adequada, a pessoa pode simplesmente acabar trocando um Narciso por outro (a mãe pelo marido rico, por exemplo).

 

Os animais que ajudam a Cinderela

                Ella se torna Cinderella: a outra coberta de cinzas. Mas para apaziguar sua dor, sempre estão ao seu lado seus fieis amigos: os ratos do casarão.

                Ah, que fofo, só que não!!! Não, gente, não. Ella é humana, e apesar de ser um conto de fadas, os ratinhos e passarinhos e o ganso são animais. Estamos falando da dificuldade dessa menina em criar vínculos com outras pessoas – por estar completamente identificada com seu papel de Cinderella, a pessoa coberta em cinzas. Quem vive na sujeira? Os ratos! E cinza de lareira é uma coisa limpa por acaso?! Ok, de um jeito muito poético (até demais), o filme mostra como Ella perdeu totalmente seu amor próprio e sua autoconfiança. Ela não está apenas sendo corajosa e aguentando tudo pela promessa com sua mãe – na verdade, ela está deprimida, carente de afeto e sem amigos. Uma pessoa isolada é mais facilmente controlada e submissa.

              Pensando na simbologia desses animais, ratos são pequenos roedores. Como já disse, os animais estão falando de conteúdos dessa personalidade que ainda não tá bem estruturada. Pequenas coisas vão remoendo dentro da Cinderela: suas perdas, as saudades, os sonhos que tinha e foram interrompidos. Mas ao contrário da madrasta, Cinderela usa todos esses conteúdos da forma mais positiva possível: lembra dos pais com carinho e gratidão pelo tempo que tiveram juntos; a saudade da infância é um refúgio para os tempos ruins; os sonhos interrompidos lhe dão esperança. Nesse sentido, Cinderella faz jus ao seu papel de heroína, uma vez que ela escolhe ser amiga dessas mazelas internas, ela acolhe sua tristeza e frustrações e busca seguir em frente.

             Por isso, em outro momento, os animais servem de ajuda para Cinderela. Podemos dizer, em termos psicológicos, que esses conteúdos quando acolhidos, bem aceitos, por mais tristes e negativos que pareçam acabam sempre nos ajudando a amadurecer e a enfrentar novos desafios. Achei fantástico que esses ratos (que roem seus pensamentos e solidão) se tornam cavalos no filme, animais que simbolizam força e liberdade, e puxam a carruagem para o baile. Ou seja, quando aceitamos nossos “ratos” internos, eles podem se transformar em algo positivo e nos guiar para grandes oportunidades.

 

Kit, o príncipe

                Uma das coisas que eu realmente aprecio no novo filme desse conto é que o príncipe encantado finalmente recebe um nome. Ele não é mais apenas The Charming Prince, ele é alguém, uma pessoa inteira, com história própria, com pensamentos, sentimentos, com vida própria. Enquanto Cinderella precisa abandonar sua infância e amadurecer enquanto mulher, o Príncipe também atravessa sua própria busca por identidade.    Afinal, é disso que se tratam os contos de fadas, heróis, príncipes e princesas, responder a velha pergunta “quem eu sou?”!

                Ao contrário do conto original, onde eles se conhecem somente no baile, no filme eles se encontram antes. A Disney realmente se engajou a ensinar de que não se pode casar com quem você só viu uma vez (e todo mundo agradece)! E por isso, ocorre um pequeno – mas muito significativo – encontro na floresta. E sim, é sempre na floresta esses encontros, mas não é por acaso. A floresta é um símbolo muito explorado na psicologia analítica como manifestação do inconsciente, daquilo que não conhecemos, do que ainda é misterioso em nossas vidas. Oras, Cinderella não sabia nada do mundo nem dos aspectos masculinos presentes em si mesma (pela ausência da função paterna); e como vemos no decorrer do filme, Kit sabia muito pouco do mundo feminino.

                Kit vive rodeado de homens, e isso fica muito claro nas próximas cenas. Ele é sempre acompanhado pelo Duque, uma espécie de conselheiro do reino, e de seu leal Capitão. Não há menção à mãe, ou a qualquer mulher no castelo. É um mundo totalmente masculino – ou seja, totalmente oposto da casa maternal e acolhedora da infância de Cinderella. Nesse mundo patriarcal, como era de se esperar, Kit se vê rodeado de afazeres e deveres. Assim é a função paternal, que ensina sobre trabalho, direitos e deveres, leis e regras da sociedade. Mas, sem o apelo feminino, esse exagero masculino leva a uma vida sobrecarregada, em função do produzir e não do sentir. Bem no estilo “tem que fazer porque disseram que é pra fazer”, não importa o motivo ou significado. Quem dá sentimento, significado, é o nosso lado Feminino.

               É interessante notar como ambos, alheios em seus mundos extremamente polarizados, são inocentes e despreparados. Tanto que Kit se auto-intitula “um aprendiz”, um reconhecimento de seu estágio de amadurecimento. O que é ótimo – perceber onde estamos e ter ciência do nosso momento é fundamental para abrirmos espaço para construção do amadurecimento. Na estrada sugerida pelo Tarô, O Louco é um aprendiz, esperando sua chance de seguir em frente e se tornar O Mago, aquele que constrói o mundo de acordo com a sua vontade. Temos nossos dois heróis nesse momento de suas vidas, inocentes e infantes, ambos identificados como o Louco que caminha sem medos para um abismo; e a mudança em cada um deles ocorre a partir de seu encontro.

              Kit nunca havia questionado suas tarefas, até encontrar Cinderella. É ao conhecer seu aspecto feminino, que um indivíduo pode começar a questionar qual o significado de suas ações, pensamentos, etc. O príncipe começa questionando se caçar é realmente um esporte válido. Mais tarde, questiona as diretrizes da sua própria vida, como casar e reinar. Toda essa imersão em si mesmo é resultado desse encontro do masculino e feminino, e por isso os contos sempre trazem a estória de um casal que, no fim, se casa. O casamento é simbolicamente o encontro feliz e harmonioso entre os mundos masculino e feminino, trazendo equilíbrio ao indivíduo.

             E se Cinderella tem como busca individual romper com aquele mundo Materno para poder amadurecer e fugir da ruína (ser eternamente escrava da madrasta), Kit também precisa romper com o Patriarcado. Ao questionar as regras e impor sua própria visão de mundo, Kit está se desligando da figura paterna e deixando de ser o Louco. E ele faz isso após seu segundo encontro com Cinderella, no leito de morte do pai. Nesse momento, o herói já sabe que uma promessa pode travar sua vida por completo, por isso é sincero e expõe a sua vontade acima da do pai. E o rei responde “Você se tornou seu próprio homem”. Em outras palavras, Kit se torna mais ele mesmo, e menos um reflexo das vontades de qualquer outra pessoa.

 

O Rei, o Duque e o Capitão

                Nesse lado do conto, o filme traz esses três personagens para demonstrar a realidade extremamente masculina em que o príncipe vive.

                Durante todo o conto, a realeza conta com a presença do Duque como um conselheiro real, a quem o Rei e o príncipe dão bastante importância aos seus apontamentos. Porém, o Duque representa a lei e a ordem em sua forma mais bruta e ferrenha. Seguir as regras é importante para que possamos conviver em sociedade, mas a lei pela lei é tirania. E o Duque possui esse traço tirânico, manipulador e tradicionalista, que preza as aparências, a tradição, a “boa moral e os bons costumes” sempre em primeiro lugar e a qualquer custo. Conhecemos e muito bem até onde essa crença desmedida na “boa conduta” pode levar, certo? E é isso que o Duque faz, em nome de proteger o reino e o príncipe, ele manipula, mente, extorque. Ciente de que personifica a própria Lei, seu Juiz e seu Executor, o Duque perde a noção do que é livre arbítrio, liberdade e empatia. Tomado desse sentimento narcisista de que somente ele conhece o que é melhor para o reino, se esquece de que a vida não é preto e branco, que mas milhares de cores existem entre esses dois extremos. Por fim, se coloca no papel de vilão, mesmo estando crente de que tudo que faz é pelo bem das pessoas. Não à toa, ele acaba sendo expulso do reino, junto à Lady Tremaine e suas filhas.

                 Já o Capitão, soldado fiel, reconhece em Kit não apenas um príncipe, mas uma pessoa. É possível perceber que os dois nutrem uma sinceridade amizade; exatamente porque o Capitão reconhece que além dos deveres, existem os direitos, como o lazer (ele fica feliz em poder ir ao baile). A vida também é diversão! É ter amigos, é ter alguém para amar e ser amado. Como fiel escudeiro, esse personagem aconselha, mas não impõe sua vontade a Kit, afinal, a decisão final de qualquer pessoa depende dela mesma. Penso aqui que, como possui o status de Capitão, isso significa que ele é um soldado, e mais uma vez nos deparamos com a necessária coragem para sair dos padrões e romper comportamentos nocivos. A coragem e a força para lutar pelo que se acredita, como ajudar o príncipe a buscar por uma moça misteriosa, tendo apenas um sapatinho de vidro como pista. O aspecto Masculino pode sim, seguir as regras sem ser cruel ou tirânico – podemos usar essa energia masculina como um ponto propulsor, como a vitalidade necessária para ir até os confins do reino atrás dos nossos sonhos!

                Por fim, o Rei, soberano e sábio, é regido pela necessidade de governar seu reino e mantê-lo seguro. Da mesma forma, ele tenta governar o filho, lhe dirigindo as ações; mas sem o poder criativo do feminino (ausência da mãe), as ações passam a ser repetições de regras e deveres. Não há potencial criativo, não há espaço para sentimento. Porém, o rei também se encontra com Cinderella – e é lembrado por ela do amor de pai e filho. Esse breve toque com o mundo feminino é suficiente para que ele perceba o erro que seria condenar o príncipe a uma vida sem amor sem fundamentos afetivos, voltada apenas ao dever de reinar.  Dessa forma, o rei age como a representação do Grande Sábio, que aconselha e direciona o príncipe e, quando o príncipe está “pronto”, ou seja, tornou-se seu próprio homem, sua missão se encerra. A morte do Rei é também a emancipação do príncipe-criança-aprendiz em um homem-adulto-rei de si mesmo.

               

A Fada-Madrinha

                Em todas as versões de Cinderella, a fada madrinha sempre se mostrou como uma “segunda mãe” de Ella (em uma das suas versões, é a própria mãe). Essa presença feminina, agora miraculosa e cheia de poder, contrapõe ao femininos sem vitalidade e servil que Ella se encontra. Esgotada de suas próprias forças, é a presença dessa figura que revitaliza e reenergiza nossa heroína, lhe auxiliando a renascer como uma bela mulher. Mas, dessa vez, essa Boa Mãe não dá tudo sem exigir nada em troca: existe um limite, uma regra, um ato paterno e masculino no feitiço que só dura até a meia-noite. Dessa forma, essa “segunda mãe” oferece o colo e o afeto, mas com o toque de realidade e limite que toda criança precisa para se desenvolver no mundo.

              Essa fada madrinha pode ser identificada como alguém real, uma terceira pessoa que nos ajuda e nos aconselha, ou pode ser uma força interna que nos aparece nos sonhos e nas intuições, nos amparando e nos direcionando. Seja como for, a fada madrinha nos contos é a figura que vem desestabilizar uma situação que está estagnada e, possivelmente, bem alojada na nossa zona de conforto. Seja uma fada boa ou má, essa figura nos empurra em direção ao desconhecido e ao amadurecimento, seja pelo amor ou pela dor.

 

     2. O Feitiço: o que já foi cinzas, se renova!

          Campbell já nos falava que o herói tem um roteiro, uma saga primordial e, nesse caminho arquetípico está seu “chamado para a aventura”, quando ele é confrontado com uma força sobrenatural ou superior a si mesmo, que determina seu novo caminho e suas batalhas porvir. Claro que o autor falava sempre em termos de mitologia e estórias de tribos primitivas, mas quando leio os contos de fadas, é impossível não promover essa associação aos feitiços e o encontro com as fadas e bruxas; o chamado acontece quando o feitiço é lançado, e o herói ou heroína se vê diante do poderoso mistério de ser alguém diferente, ou estar em uma situação diferente.

            Acontece que Cinderella, no caso, não se torna ninguém diferente e essa é a parte mais sensacional do conto! Ela não vira sapo, não cresce orelhas de burro, ela não vira uma fera nem mesmo dorme profundamente, se tornando um corpo sem vida; nada disso, na bem da verdade ela só muda de roupa e ganha uma carona.

             Parece pouco quando pensamos em termos mágicos, afinal ela poderia ter ganhado um castelo, um reino inteiro, ou um objeto mágico superpoderoso... não, Cinderella ganha um vestido alugado (tem que devolver à meia noite!) e alguém bancando o Uber naquela noite.               Colocando assim não é tão glamuroso como parecia, certo? Mas vamos nos lembrar de que é um conto de fadas e estamos falando em termos simbólicos, aí sim, faz toda a diferença.

            Na psicologia analítica, existe uma função da psique chamada Persona. É a nossa máscara social, aquele aspecto da personalidade que se adapta à sociedade e assim nos permite lidar com as pessoas de um jeito saudável. E adivinhem qual é um dos símbolos dessa máscara nos sonhos e nos contos? As roupas. As roupas dizem muito sobre nós, por isso nos vestimos de acordo com o local e a situação que vamos nos deparar. Eu não uso para trabalhar as mesmas roupas que uso na academia ou numa festa de gala! Cada situação demanda um tipo de postura, assim como um tipo de roupa – e me articular dentro desses parâmetros significa que eu sou capaz de me adaptar a essas situações de um jeito positivo. Bom, caro leitor, lembra quando eu expliquei que a Cinderella não sabia nada do mundo, não sabia lidar com as pessoas? Quando ela muda de roupa, ela está mudando de atitude. Simbolicamente, estamos falando que agora ela tem uma Persona mais fortalecida e apropriada, ou seja, ela passa a saber se adaptar diante das situações (o que antes não acontecia devido sua passividade e falta de vitalidade).

E a carruagem? Oras, com essa nova roupagem, já bem orientada no mundo externo e suas regras, Cinderella é capaz de ir aonde bem entende.           O Carro representa essa possibilidade de conduzir a própria vida, com seus próprios recursos (os amigos na forma de animais, as plantas que ela mesmo cuida como aspectos do seu trabalho, etc).

         O último símbolo (e o mais importante de todo conto) é do sapatinho de cristal ou vidro, como é exposto no filme. Os sapatos também fazem parte dessa nova roupagem (da Persona), mais se pensarmos um pouco mais sobre o que são os sapatos, podemos associar que são os protetores dos pés. E são nossos pés que – literalmente - percorrem o nosso caminho, que nos levam para onde queremos ir com nossas próprias forças! Nada mais perfeito que ser um sapato o objeto que faz o Príncipe trilhar todo o mundo de volta à sua amada, não? Já o fato de serem de cristal ou vidro está associado à pureza e a transparência desses elementos, mostrando mais uma vez que Cinderella não estava disfarçada de princesa, mas foi vestida de si mesma ao baile e ao encontro de seu futuro amor.

        Cinderella não é enfeitiçada para virar outra coisa ­– aliás, outra ela já é, pois tem coragem para se diferenciar da madrasta e das irmãs. O feitiço (novamente) só revela quem ela sempre teve a potencialidade para ser, a força que existia dentro dela e só precisava de um momento oportuno para acontecer. Gosto de observar, tanto no filme quanto em outras versões, como o feitiço, em si, não foi o responsável pelo encantamento amoroso entre Cinderella e seu príncipe. O príncipe não se apaixona pelo sapatinho nem pelo vestido, muito menos pela carruagem luxuosa. É o encontro de suas personalidades e as qualidades tanto de Cinderella (gentil) e do príncipe Kit (corajoso) que promove a paixão.

               

     3. Conclusão

        Os contos de fadas têm esse poder de nos envolver e nos fazer vivenciar um pouquinho de nós mesmos em suas estórias. Esse conto é muito mais que uma alusão fantasiosa a ascensão social – de gata borralheira à princesa, quantas versões de filmes e desenhos não se aprofundaram no tema superficial da moça pobre que encanta o moço rico? Como se a sua moral fosse simplesmente “a nobreza do caráter faz a moça humilde subir na vida social!”

        Podemos ser corajosos agora, e vamos olhar para os contos como mensagens para nos tornarmos pessoas melhores. Se isso vai te dar mais dinheiro no banco ou fazer você se sujar de cinzas em alguma lareira, eu não sei! Mas seja em qual situação estiver, o conto mostra que nós podemos encontrar nobreza e força mesmo quando nos sentimos sujos, sem valor ou afeto. Que nossas pequenas gentilezas geram outras gentilezas, mesmo que não possamos perceber – porque estão inconscientes aos olhos cobertos de cinzas. Mas, em algum momento, a qualquer momento, podemos e devemos nos cansar dessa pobreza de amor próprio e, com certeza, quando vestirmos nossa melhor persona, vamos encontrar o nosso caminho à felicidade.

bottom of page