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Só se lê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos
de Dannilo Autorino
Nunca será fácil escrever sobre o Pequeno Príncipe. Ontem, quando terminei de ler o capítulo XXVI, achei que não fosse dar conta de continuar a leitura, pois eu precisava sair um pouco para respirar, pensar. Porém, o adulto que me tornei insistiu que eu continuasse até o fim porque ele queria que eu escrevesse este texto o mais rápido possível.
Há um mito de que esse livro deve ser relido em várias épocas da vida. Por mais que isso pareça clichê, passar por essas páginas mais uma vez só me provou o quão potente ele é e o quanto ele ainda é capaz de mexer com as minhas emoções. Sei que não são todas as pessoas que amam O Pequeno Príncipe, mas tem uma parte dentro de mim que sempre volta a admirá-lo. E dessa vez, a minha admiração irá além dos sentidos, pois tentarei trazer para a consciência todas as transformações que o romance me causou nessa última releitura, além de homenagear a persistência da minha “criança interior” em alertar quando e onde estou me tornando um “homem grande”.
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Introdução
O Pequeno Príncipe possui dois opostos extremos: A criança (que representa a inocência, a criação, a integridade, a conexão consigo e com as pessoas) e o adulto (representado pela malícia, o padrão, a mentira, a desconexão consigo e com as pessoas).
Vamos começar pela criança, representada de duas formas no livro: a primeira é a que inicia a história mostrando o desenho de um felino sendo devorado por uma cobra e a segunda é representada pelo próprio Pequeno Príncipe. Podemos interpretá-las como a mesma pessoa em estados diferentes, sendo a primeira, mais física (o aviador quando era pequeno) e a outra o lado interno do primeiro quando ele já é adulto, como se fosse um estado de espírito, ou como eu costumo chamar, “criança interior”.
Antagonizando essa(s) criança(s), temos o adulto, representado pelo aviador. Ele está perdido no mundo de “gente grande” tentando deixar vivo o seu “lado infantil”, mas sempre em vão, fazendo com que ele se senta sozinho. Tanto que na estória, ele vai cair de avião em um deserto, representando bem essa escassez de sentimentos que é viver no mundo dos grandes.
O que vai acontecer nesse romance é a união desses dois polos para que eles se equilibrem, pois eles sozinhos entram em desequilíbrio: uma criança sozinha, em seu extremo, é irresponsável, emocional e impulsiva; enquanto o adulto, em seu extremo, é formatado pelo nosso sistema, racional e sem imaginação. Se os dois se encontrarem, um estado harmônico brotará deles fazendo nascer um terceiro elemento: o adulto infantil.
Quando falo em adulto infantil, não quero dizer adulto infantilizado, pois adulto infantilizado corresponde a uma pessoa que não quer crescer e tenta se conservar ao máximo na sua forma infantil: como ir contra a idade, usar roupas de criança, agir e falar como uma e etc; enquanto o adulto infantil é um adulto com o cognitivo aberto, criativo, que ainda entra em contato com a sua essência e as coisas sutis da vida, longe dessa formatação cultural que nos ataca desde cedo para sermos mais um (perdido) no meio de todos.
2. Onde tudo começa
A história começa com uma criança explorando seu dom para o desenho. Ela desenha uma cobra devorando um felino, e apenas pelo formato do desenho, os adultos pensam que aquilo representa um chapéu. Vemos aqui o olhar dos adultos de forma objetiva: aquilo tem formato de um chapéu, então é um chapéu. Enquanto para a criança, aquilo pode ser muitas coisas, como no caso, uma cobra devorando um outro animal. Em outras palavras, os adultos possuem uma visão limitada e racional da vida, enquanto para as crianças tudo é possível, pois eles conseguem transformar um simples objeto - como uma cadeira, por exemplo – em uma nave, um esconderijo, um trono, um barco e assim por diante.
O menino, ainda querendo convencer os adultos de que seu desenho não era um chapéu, desenha um elefante por dentro da cobra tentando ser mais explícito. Mas os adultos mais uma vez ignoram a possível carreira de artista dele e o desencorajam a continuar trabalhando, achando aquilo tudo bobagem. Eles o incentivam a se dedicar à geografia, à história, ao cálculo e outras coisas que são importantes para virar um bom adulto. Com o intuito de desenvolver melhor essa parte, podemos fazer um paralelo com o geógrafo que o Pequeno Príncipe encontra na viagem aos planetas, pois ele só sabe onde ficam os vulcões, os países e as cidades porque os exploradores lhe contam, sendo que na verdade, ele nunca viu um vulcão, um país, nem nada... Fica aí, então, um questionamento sobre a educação pelo conhecimento e não pela experiência/vivência. O Pequeno Príncipe vive tudo o que ele aprende, e por esse mesmo motivo, ele tem mais propriedade para reproduzir as lições do livro. O seu conteúdo não fica na teoria, foram vivenciadas na prática. Ou seja, há muito que se poderia aprender com a vida, mas os únicos conhecimentos válidos para a sociedade são aqueles aprendidos na escola.
Por conta dessa insistência dos adultos em pedir que ele se interesse pelas coisas que são “importantes”, o autor se transforma em um grande aviador, que mesmo adulto, continua a procurar por pessoas “lúcidas” (que possuem essa “visão infantil”). Porém, como já foi dito, ele não encontra ninguém e se sente sozinho, caindo com seu avião no deserto do Saara, pois o motor tinha quebrado.
Aqui temos dois pontos importantes:
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O motor é o coração do avião. Não é a toa que ele quebra, pois o aviador não está feliz levando a vida daquele jeito. É como se seu coração também estivesse quebrado;
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Ele cai no deserto, representação de seu estado emocional, completamente vazio e abandonado. Inclusive, a África é o país de origem dos seres humanos, portanto, nada como voltar para dentro de si, de onde tudo começou, para entrar em contato com a sua essência/origens. Eis que lá no fundo de sua solidão, ele se depara com alguém muito especial que o ajudará a encontrar a harmonia da qual ele precisa: O Pequeno Príncipe.
3. O Pequeno Príncipe
A primeira frase que o Pequeno Príncipe diz para o aviador é “Desenha-me um carneiro”. O aviador, tendo ficado anos sem desenvolver seu dom, acaba tendo dificuldades para desenhar. Então ele tenta duas vezes, produzindo desenhos óbvios, típicos de um adulto, fazendo o Principezinho recusar e pedir que tentasse mais uma vez. Só quando o aviador desenha uma caixa com um carneiro dentro, é que o Pequeno Príncipe aceita o desenho, pois o aviador retoma, ali, o olhar criativo e “aberto” de uma criança. Descobrimos, então, que o objetivo do Principezinho é o de resgatar no aviador a sua “criança interna” (por meio do desenho/dom natural), ou seja, seu lado ingênuo, criativo, aberto para o mundo, pois ele já tinha "se rendido" ao universo objetivo dos adultos. Tanto que quando o Pequeno Príncipe cumpre sua missão de passar as lições mais puras que aprendeu ao longo de sua jornada, ele diz que precisa ir embora, como se já tivesse cumprido a sua missão.
Mas vamos com calma, pois são muitas as lições que ele aprende e que precisam ser analisadas.
4. A rosa
A rosa nasce repentinamente no planeta do Principezinho e então ele começa a cuidar dela, assim como cuida de seu planeta. A rosa é muito vaidosa e essa vaidade doentia se transforma em um grande problema para o Pequeno Príncipe, pois ela queria a atenção dele todo o momento. Então ele se cansa dessa problemática e escolhe deixá-la, partindo para uma viagem para conhecer outros planetas.
Vemos aí a imaturidade do Pequeno Príncipe que não aprendeu ainda o significado da palavra cativar. Apesar de cuidar muito dela, gostar da companhia, do seu perfume e do seu embelezamento, foi só acontecer o primeiro “descontrole” na relação que ele “cai fora”. Isso representa a fragilidade das emoções hoje em dia (quem se interessa pelo tema, sugiro a leitura o livro “Amor Líquido”, de Bauman). As pessoas adoram se relacionar quando o affair está começando, quando tudo ainda são rosas, mas quando aparece o primeiro desentendimento, já vira motivo para “bloquear” a pessoa e navegar por aí, procurando conhecer outros “mundos” menos complicados.
Quando o Principezinho aprende o significado da palavra cativar, ele percebe que o que torna alguém especial não é o que vemos, mas o laço que criamos com ele e as ações cotidianas de se importar um com o outro, aí então ele percebe que gosta da rosa. Falarei mais sobre o cativar no capítulo 6.
5. Os planetas
O Pequeno Príncipe viaja por 7 planetas, sendo 6 deles pequenos e habitados por um homem só. Cada um representa o mundo particular de cada adulto, encontrados facilmente na Terra (o sétimo). Citarei apenas um exemplo para cada, mas fiquem a vontade para buscarem outros pontos de vistas, pois eles realmente abrem possibilidades para muitas interpretações.
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O rei: Saindo do obvio de que ele representa os homens de poder, podemos ver nele, os adultos, quando acreditam que podem ter o controle sobre a vida, o que é pura ilusão. Apegamo-nos a garantias de um emprego para a vida toda, de que uma faculdade é o primeiro passo para o sucesso profissional, de que vamos casar, ter filhos, etc, sendo que muitas vezes não chegamos a realizar metade do que projetamos. Nesse caso, percebemos que não temos o mínimo domínio sobre a natureza da vida, apenas alimentamos a ilusão de que a controlamos.
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O vaidoso: Esse está facilmente implícito nas redes sociais, é só olhar para o facebook e perceber que somos viciados em likes, em respostas “brilhantes” entre brigas intelectuais e etc.
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O bêbado: Quem nunca foi ou vai todos os dias ao bar para “esquecer” dos problemas? Ficar inconsciente para fugir das questões existenciais é comum na nossa sociedade, não precisa ser como bêbado, mas todos os vícios servem para tampar algum buraco existencial difícil de lidar (incluindo excesso de Netflix e de trabalho).
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O homem de negócios: Esse é o homem do cálculo, que precisa de dinheiro para ser feliz. É aquele que quer possuir tudo o que está na moda, que precisa ter para ser feliz, e ele fica tão cego no ter que não percebe que no fundo, no fundo, ele não tem nada.
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O Lampião: é aquele que vira escravo da sua profissão, sendo mais um produtor de coisas que não são para ele. É como aquelas pessoas que ficam presas na rotina ou até mesmo em sentimentos ruins (como a fofoca), aquilo roda, roda, roda e não sai do lugar. É outra forma de perda de consciência.
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Temos também o geógrafo, aquele de qual falei no capítulo 2, sobre o conhecimento pelo conhecimento. A meu ver, são os teóricos extremos que se banham de conhecimento, mas não se sentem capazes de ir para a “ação”. Ou também aquele famoso “Faz o que eu digo, mas não faz o que eu faço”. A dificuldade das pessoas de saberem teoria e não saberem executá-la é uma problemática, a meu ver, urgente na nossa humanidade.
E por fim... chegamos na Terra.
6. A Terra, a raposa e a cobra
Enquanto o Pequeno Príncipe viajava os planetas, ele estava conhecendo o mundo dos homens, acumulando experiências. Isso significa que ele está amadurecendo, melhorando a si por meio dessas vivências. Então ele conhece a raposa, que aparece como um velho conselheiro e o ensina as lições mais preciosas para a vida dele, que correspondem às frases mais famosas do livro.
Cativar: É a palavra que significa criar laços. Por meio desse ensinamento, a raposa mostra que para se relacionar com uma pessoa, é preciso antes cativá-la, tanto que ela só se aproxima do Pequeno Príncipe depois de ter sido cativada (teoria e ação trabalhando juntas). Logo, a relação se intensifica, e são os momentos e cuidados que um vai tendo com o outro que os fazem amigos ou amantes, e não a pessoa sozinha. Em outras palavras, ele quer dizer que não é o objetivo, mas o caminho (o espaço entre), que fazem as relações serem verdadeiras. É mais ou menos como a música de Ana Vilela, que ficou famosa recentemente: “Não é sobre chegar no topo do mundo e saber que venceu, é escalar a montanha e sentir que o caminho de fortaleceu”. Outra passagem que lembra essa música é o trecho em que aparece o maquinista e ele fala que, enquanto os adultos dormem durante a viagem de trem querendo chegar logo ao seu destino, as crianças fazem caretas e aproveitam as paisagens. Exupéry sempre mostra as diferentes formas que uma criança e um adulto têm de se relacionar com a vida. E a proposta dele até o final do livro é unir as duas fazendo de seu aviador, um “adulto infantil”. Em resumo, é preciso cativar antes de se relacionar e depois disso, perceber que o que faz o amor florir é a relação com a pessoa, e não a pessoa com suas qualidades e defeitos.
Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas: Ser responsável é responder pelos seus atos, ou seja, é assumir com seus compromissos, com a sua palavra, e é isso o que cada um de nós deveríamos fazer e que muitas (na grande maioria) das vezes não acontece. É a promessa vazia das pessoas que dizem que você pode contar com elas para alguma coisa, sendo que no fundo não pode porque elas vão “dar para trás”. É a mesma questão dos relacionamentos líquidos que foi abordada acima, tema muito presente nessa obra e na humanidade.
7. Final
Quando o Pequeno Príncipe completa sua missão (despertar a “criança interna” do aviador e arrumar o “motor/coração” dele) por meio do desenho e também compartilhando toda a sua experiência, ele decide que é hora de partir. O Principezinho frisa muito bem suas lições para que o adulto nunca se esqueça delas, e conforme eles vão andando de mãos dadas pelo deserto, vemos ali a harmonia sendo concretizada: o aviador já sendo, naquele momento, um “adulto criança”.
Então, o Pequeno Príncipe se deixa ser picado por uma serpente e volta para o mundo de onde veio. Essa cena é um suicídio e embora pareça muito triste, ela não o é, pois o objetivo principal foi conquistado: o aviador nunca deixar de ser esse “adulto infantil”. Tanto que o Principezinho fala que quando ele sentisse saudades, era só olhar para as estrelas que ele veria como tudo ia ficar diferente, enquanto como adulto, ele não veria nada demais. É como se o Pequeno Príncipe estivesse dentro dele agora, eterno em seu coração.
No final, quando o aviador pede ao leitor para avisá-lo que caso passe pelo Saara e encontre o Pequeno Príncipe, percebemos o desejo dele de que todo adulto encontre o “seu” Pequeno Príncipe (criança interior) e venha compartilhar a novidade com ele, pois esse amadurecimento de ser um “adulto criança” é algo encantador que deve acontecer e merece ser festejado em união.
8. Conclusão
Por fim, o livro fala que todos nós já fomos criança um dia, mas que nos esquecemos do que isso significa. Então, ele tenta fazer um resgate, pedindo que a “criança de cada um” encontre e desperte a essência sensível, criativa e inocente de “seu adulto”. Mas ele não diz que é para sermos infantilizados, muito pelo contrário, é para sermos adultos que se lembram do que é ser inteiro, singular e com milhares de possibilidades.
O Pequeno Príncipe é visto por muitos como um livro tonto e infantil, e isso só comprova o quanto algumas pessoas estão perdidas em alguns dos sete planetas. Exupéry chama pessoas que veem o essencial de lúcidas. Muita gente as chamaria de loucos, e creio que seja preciso ser meio “louco” mesmo para gostar dessa obra, pois como uma das mais famosas frases do autor diz (salvo por uma palavra): só se lê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos.