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O Encanto dos Vilões

de Gisele C. Laranjeira

                Vamos começar pelo básico: Qual seu vilão favorito? E você sabe por quê escolheu esse e não outro?

             Existe hoje uma overdose de cultura sobre heróis e vilões fantásticos. Nos filmes, nos seriados, nos livros, a necessidade urgente de que o humano seja mais que humano, seja poderoso, seja heróico, seja salvador. E seja destrutivo. Não assistimos apenas os heróis. Na verdade, às vezes nem nos interessamos tanto assim por eles.

           Lembro do seriado Dexter, personagem assassino em série, sociopata, sem emoções, protagonista de uma das séries mais famosas dos EUA e um dos personagens mais queridos. Ninguém torcia que ele fosse preso, morto ou sequer condenado por suas ações. Depois veio Breaking Bad e o seu queridíssimo professor de química. Ok, não vamos longe, voltamos aos clássicos! Darth Vader, quem realmente tinha ódio dele, já que hoje virou símbolo geek? Basta navegar um pouco pela internet, a gente esbarra em fã-clubes (chamados fandoms) de todos eles: Joker, Crowley, Loki. Preciso falar de Game of Thrones, a mistura crua e fina de heroísmo e vilania em cada personagem, o que mais poderia nos prender tanta a atenção?

              Gostamos dos vilões. Sim, nos afeiçoamos, tentamos entender, julgar, culpar e defender. Mas principalmente, queremos vê-los no próximo filme, no próximo episódio, no livro seguinte, e, quem sabe, até com um final feliz?

              Sabemos que temos nosso lado negro, nosso monstrinho dentro de cada um de nós… ok, é por isso que gostamos de vilões certo? Sem novidades até aqui.

          Mas tem algo mais, algo borbulhando entre uma camisa com Vader e um poster do Coringa. Algo diferente surge quando precisamos dos bandidos, dos vilões, dos malvados, mas precisamos deles desesperadamente bem, seguros e felizes. Quando precisamos que sejam vilões sem serem pegos, sem pagarem pelos seus crimes, sem rendição ou punição.

               Por que às vezes torcemos que o lado mal fique impune?

               Vamos falar um pouquinho sobre identificação e projeção.

         Ninguém nasce com manual de instruções, não vem em nenhum lugar escrito o que você é, como é ser você e quais os procedimentos a seguir. Nós criamos uma sociedade com essas regras, olhamos uns para os outros buscando um noção de consenso sobre o que é ser humano, nos identificamos como pessoas a partir de outras pessoas. Ou seja, fulano A sente fome, eu sinto fome, somos iguais. Simplório, ok, mas continue no raciocínio. Quero que você entenda que a identificação ocorre o tempo todo, com todo mundo, com todos a sua volta, em maior ou menor grau. Buscamos o tempo todo referência de como ser ou não ser. O que é ser uma pessoa? O que eu devo fazer para ser um ser humano? Essa busca por identificação é um processo contínuo e gradual, com o tempo você molda padrões de identificação com base na cultura e na sociedade em que você vive.

         “Ser humano é vestir roupas, pois todas as pessoas da minha sociedade fazem isso”; por exemplo. Não quero dizer que naturalistas não são humanos, que os indigenas antigas não eram… mas a sua identificação de um ser humano, vem com roupas, certo? Por isso, algumas pessoas reagem com estranheza ou humor ao verem animais com roupas. Eles não são humanos, eles não se identificam com essa atitude - o que torna esse fato algo engraçado ou estranho.

Mas e os vilões com isso? Bom, você se identifica com as roupas, com a fome, com a fala, com o fato de ir para a escola. Logo, vão crescendo outras norminhas de um ser humano: não matar, não agredir, não estrupar, não xingar a mãe… etc. Seres humanos não fazem essas coisas e ensinam a você que, quem o faz, perde sua humanidade, são monstros, aberrações. São os vilões. E ainda bem que nos ensinam essas coisas, que chamamos de valores morais, afinal sem eles a vida em sociedade seria muito dificil… Assim, seres humanos em sociedade, definidos por valores morais em comum, nutrem noções fundamentais de autopreservação (não matar, não agredir, não desrespeitar) mas que, além de garantir a subsistência de todos, trata de uma vivência harmoniosa dessa própria sociedade.

              O que os vilões fazem é quebrar essas regras. E, nós, na nossa intimidade escurinha, no monstro que mora embaixo da nossa cama e consciência, às vezes também queremos quebrar as regras. Somos violentos, maus, egoístas… só que aprendemos, socialmente, que isso não é uma coisa boa e precisa ser descartada, trabalhada ou oprimida.

              A diferença entre um vilão real e um vilão como Loki, no filme, é que o vilão real machuca as pessoas, de forma verdadeira. E isso nos agride moralmente, fisicamente, agride nossa visão de que a sociedade é útil para nos proteger do mundo. Loki, no entanto, não machuca ninguém - não de verdade. Ele brinca com as nossas emoções, com nossos medos e, principalmente, nossos desejos feios, de machucar sem machucar. É aquela velha história da fantasia… Sabemos que não é de verdade, mas é divertido ver cidades explodindo, pessoas lutando, ação, sangue! Saciamos nosso lúdico violento nos vilões e suas artimanhas. E mais que isso: saciamos naquele vilão nosso desejo infantil de não lidar com as consequências dos nossos atos.

             E então, lembra que eu falei em projeção? Não projetamos nos vilões nossa vontade de ser vilão. Não, não é simples assim. O que projetamos neles é a nossa balança interna, ou melhor, o quanto estamos distantes de sermos vilões!

Olha, eu roubei no troco da padaria, mas eu não mato pessoas como esse cara aí! Ele é um vilão, não eu. Roubar um troco não muda nada na vida de ninguém.

             Eu cortei aquele carro no trânsito… mas olha esse cara dissecando pessoas! Ele é um vilão, não eu. Eu sou uma boa pessoa, não fiz nada contra ninguém.

              Eu quase bati nela… mas quase! Eu sou bom, ruim é aquele cara daquele programa, você viu semana passada o que ele fez? Eu não fiz nada.

             Os vilões massageiam nossas pequenas culpas. Precisamos deles terríveis, sanguinários, cada vez mais explícitos e horrendos! Isso para que nossas ações negativas sejam minimizadas, deixadas de lado, expiadas de culpa. Amamos os vilões porque eles nos fazem nos sentir bem com a gente mesmo.

             O que é um troco errado não é? Uma ação ofensiva no trânsito, ou ameaçar bater em alguém mais fraco que você? Ora, não é nada, olha esse vilão como ele é pior que eu! E quando o vilão é feliz, se regenera, se safa através do perdão e do amor dos herói, bom, é a glória! Porque significa, obviamente, que você também merece todo perdão de todas as pequenas maldades diárias que machucam pessoas reais, certo? Não importa que ele é um personagem, e você é real, se a balança aqui é sobre atitudes e não sobre conceitos de realidade, dur. (Sinta a ironia, é importante, realmente importante.) Na verdade tudo que você faz importa e traz consequências para as pessoas à sua volta, para o balconista que vai tirar do salário o troco, para o motorista do outro carro, para a pessoa que recebeu a ameaça. Estamos dentro de um ciclo de ação e reação, o tempo todo.

          O que me preocupa, confesso, é como temos cada vez idolatrados os vilões e banalizado os mocinhos. Como as novas exposições da arte de contar histórias fala muito mais dos cara maus - mas que são fofos e legais e etc - ao invés dos heróis que lutam, enfrentam, e guardam em si aquelas coisinhas bestas, os nossos valores como seres humanos.

Nada contra deuses cruéis e assassinos em séries, suas histórias devem ser contadas e estudadas e elogiadas por toda sua gama de interpretações, sua riqueza simbólica. Mas quando vivemos em uma sociedade em que não importa mais se nos importamos… às vezes sinto saudade de quando todo mundo queria brincar de ser o Capitão Planeta.

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