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Todo mundo é fera por dentro

de Dannilo Autorino

          Esta análise tem a pretensão de ser uma leitura agradável para todos aqueles que são apaixonados por esse conto, respeitando todas as interpretações já escritas e desenvolvidas, seja por pesquisadores, teóricos, internautas ou youtubers. Acredito que uma história se torna muito mais rica quando ela consegue despertar nas pessoas vários tipos de leitura. Apresento a você, portanto, mais uma delas.

  1.  O conto como um todo

       Não é segredo nenhum que A Bela e a Fera possui inúmeras versões espalhadas pelo mundo, seja no teatro, na literatura, no cinema e até mesmo em desenhos animados. Por esse motivo, gostaria de destacar que os documentos de base utilizados para a realização deste trabalho, são: o desenho e o filme da Disney, realizados em 1991 e 2017, respectivamente, e também a obra de Madame Villeneuve, a autora que deu origem à primeira versão do conto.

      Todo conto de fada possui dois personagens opostos que precisam se encontrar e entrar em harmonia ao final. No caso de A Bela e a Fera, as personagens são as que dão título à obra, e os polos opostos são a Beleza e a Feiura. Dentro dessa dicotomia, podemos encontrar outras diretamente relacionadas, como Razão X Emoção; Modismo X Essência; etc. Tendo isso em vista, entendemos que a obra discute, como plano principal, os valores da beleza, nos fazendo questionar onde o verdadeiro belo se encontra (rompendo um padrão ou concordando com ele?) e como fazemos para acessá-lo. Ao longo do texto, desvendaremos cada passagem do enredo, apresentando ao leitor o caminho que o conto faz para que ele encontre a verdadeira beleza existente em qualquer pessoa.

      Para começar, uma das personagens principais da história recebe o nome de Bela. Em resumo, bela vem de beleza, que de acordo com a teoria aristotélica de beleza, significa harmonia, seja ela a simetria de uma pintura, de um objeto ou até mesmo da forma física das pessoas; seja ela a perfeição harmônica da natureza - aquilo que nos causa uma plena sensação de bem-estar emocional. Bela, portanto, significa harmonia, o que não corresponde totalmente a nossa querida protagonista, pois apesar da beleza externa de Bela, reconhecida por todos do vilarejo, existe desarmonia em seu interior, pois a personagem é identificada como diferente das outras por gostar de ler, como também se concretiza através da canção do filme da Disney:

“Homem - esta garota é muito esquisita, o que será que há com ela!

(...)

Mulher- o nome dela quer dizer beleza, não há melhor nome pra ela.

Homem- mas por trás desta fachada, ela é muito fechada. Ela é metida a inteligente...”

       Esse lado peculiar e fechado de Bela é uma aparência sombria e em desequilíbrio, algo como uma fera. Com sua sede por livros e até mesmo - como fizeram no filme -, seu papel de inventora, Bela assusta os habitantes do pequeno vilarejo por fugir dos padrões; ou seja, ela podia ser apenas linda como as outras, mas isso não ocorre, fazendo-a tão ameaçadora quanto um monstro que precisa ser domado.

       A Besta, antagonicamente, era um príncipe que só via a beleza externa e, por esse motivo, uma fada o transformou em um monstro para que ele aprendesse algo sobre superficialidade e autenticidade: o belo é o padrão ou será que existe algum outro? É isso o que ele – junto ao público – terá que descobrir até o final da história. Enquanto a Fera é desprovida de beleza, vai descobrir – com a ajuda de Bela – que existe beleza até nas mais feias criaturas, e que ela não está no exterior. Percebemos, então, que para fazer nascer (ou desabrochar) o elemento bondade dentro de Fera, ela vai precisar de outro elemento: Bela.

       Dessa maneira, compreendemos ao longo do texto que A Bela e a Fera possui dois lados de uma mesma moeda: o conservadorismo/razão, representada por um padrão sistematizado em uma determinada época e o qual somos, a todo o momento, intimados a seguir (Bela); e a essência/emoção, representada pelo que realmente somos e tentamos reprimir de todas as formas para agradar a esse sistema pré-estabelecido (Fera).

 

       2.  Gaston e as iguais

       No conto original, temos a presença das três irmãs mais velhas de Bela, que são fascinadas por joias e roupas caras, enquanto a mais nova só quer saber de ler e ajudar o pai. Nas versões da Disney, as irmãs de Bela são substituídas por três moças idênticas que são apaixonadas por Gaston, o caçador. Essas moças não são iguais por acaso, elas são um estereótipo de pessoas sem personalidade, que pensam e agem de uma forma padronizada. Se transportássemos tais personagens para os tempos atuais, elas seriam os meninos e meninas que seguem tudo o que está na moda ou que procuram desesperadamente fazer parte de um mesmo grupo, o qual, normalmente (embora nem sempre), é dominante.

      No enredo do filme, enquanto as iguais buscam a superficialidade (casar-se com Gaston, um homem que vê a beleza exterior como característica primordial em uma mulher) Bela sente pulsar dentro de si uma grande vontade de fugir daqueles padrões. Essa vontade é representada por Fera (algo que foge dos padrões) que a convida a acessar a sua essência, o seu “lado feio”, pois ela sabe que algo está em desarmonia dentro dela, ela só não sabe como fazer para libertá-lo. Para isso, não há nada melhor do que se afastar de um lugar aprisionador como aquele em que vive e que a impede de se conhecer. Sem conhecer, entender e se harmonizar com seu lado “obscuro”, Bela pode conseguir ser ela mesma. É nesse momento que, por causa de uma rosa pedida por ela, a moça sai de sua cidade e vai para o campo em busca de uma salvação (ela salva o pai, mas ao mesmo tempo, está salvando ela mesma). Essa questão nos faz perceber que o conto quebra padrões. Isso não acontece só por Bela ser “diferente”, mas também se confirma na presença do pai dela, Maurice, que se contrasta com a figura culturalmente imposta que se tem de um pai: ele é carinhoso, amável e protetor. Um homem com características femininas é mal visto nos dias de hoje, imagine naquela época.

      Embora a personagem Gaston não esteja no conto, ele é interessantíssimo de ser analisado. Na obra, o vilão possui apenas um objetivo: caçar! Ele é um caçador nato que vê em Bela uma presa difícil de ser alcançada (o que é muito mais tentador para ele). Ao invés de vê-la como ela é de verdade, como por exemplo, se interessar por saber qual livro ela está lendo, o “vilão” se preocupa se vai conseguir sua cabeça ou não, com o objetivo de aumentar sua coleção de “troféus”. Em resumo, ele não liga para os sentimentos de Bela, muito menos para quem ela é; ele só está interessado no status que Bela pode lhe dar.

      O que é interessante de perceber nesse fato, é que Gaston quer caçar Bela da mesma forma como ele caça um animal (Fera)... podemos entender aí - de novo - que Bela e Fera são como duas faces da mesma moeda (um tem um pouco do outro dentro de si), e a sedução do caçador por insistir em uma mulher que não lhe corresponde pode ser pelo fato da caça ser excitante para ele, e não o amor!

      3. Cativando a própria sombra

      Bela e Fera começam a se entender quando Fera a salva dos lobos e Bela salva Fera da morte. Depois desse momento empático, percebemos que eles se aproximam até notarem o quanto têm em comum, começando pela paixão pelos livros.

Enquanto Bela se matava para ler alguns poucos livros na pequena livraria que existia em sua aldeia, Fera lhe deu uma biblioteca imensa, conseguindo finalmente tirar o primeiro olhar carinhoso de Bela. Mas se esquecem de que quando nada do que nós somos é valorizado dentro do sistema onde vivemos, e uma pessoa a qual mal conhecemos consegue enxergar aquilo que todos que vivem no mesmo ambiente que você e te viram crescer nunca conseguiram enxergar, já é um excelente motivo para que haja um mínimo de apatia. E esse foi só o começo. Há também a parte em que Bela diz que se sente aprisionada dentro de sua aldeia, enquanto Fera faz o mesmo comentário sobre sua condição física e emocional causados pela magia da fada. A aproximação deles não é tão repentina quanto parece, existe ali um momento de compreensão e aceitação pelo que se é no coração.

       Assim, podemos observar que ambos são muito parecidos, pois fogem dos padrões costurados pelos que vivem dentro da cidade. Conforme Bela e Fera começam a se relacionar, um começa a tomar as características do outro buscando o equilíbrio e não a anulação de suas essências, como na parte em que Bela toma sopa da mesma forma que Fera (direto do prato), e também quando ele passa a ser mais gentil como ela. Vemos aí um início harmônico de Fera desenvolvendo um tipo de beleza e Bela conhecendo e gostando de viver dentro da sua essência, mesmo que ela fuja do padrão. Em outras palavras, Bela aceitando e cuidando de sua fera interior e a Fera conhecendo a verdadeira beleza.

       A despeito de todos esses acontecimentos, gostaria de frisar que a relação de amor entre eles só se estabelece de fato, quando Fera libera Bela para ir ver o pai, porque o amor é libertador e não aprisionador. Quando Fera mostra à Bela, através do espelho, o estado adoecido de seu pai, Fera percebe o quanto os dois estão sofrendo longe um do outro, então, ele a liberta, sacrificando-se da mesma forma (e motivo) pelo qual Bela se sacrificou pelo pai no castelo: por amor. Em outras palavras, ele dá a liberdade a ela da mesma forma que ela deu a liberdade a seu pai, colocando-se em uma situação de perigo. Bela, por sua vez, reconhece esse gesto por já tê-lo praticado, e isso alinha mais os dois corações. Eles estão, portanto, se reconhecendo nas atitudes um do outro. Ainda sobre a libertação, é possível perceber que naquele momento, Bela está em paz com sua essência meio fera enquanto Fera dá o primeiro indício de que adquiriu uma essência bondosa.

       Mas Bela não sai do castelo sozinha, a moça leva o espelho de Fera (no original, um anel) para a cidade, representado pelo desejo de nunca se esquecer daquilo que ela “construiu” no castelo, ou seja, do encontro – agora saudável - com seus sentimentos mais profundos. E tem objeto mais representativo para isso do que um espelho? Como se esquecer de quem ela é tendo em mãos um objeto que reflete sua própria alma?

       Em resumo, nesta parte vemos que só são felizes aqueles que são fiéis e estão em paz com a sua própria alma, aqueles que fogem de si, ou seja, que buscam a felicidade fora (no outro ou em alguma coisa), são tão perdidos quanto as três irmãs. E quando entramos em harmonia conosco, sempre teremos um espelho do nosso lado que nos lembrará sobre quem nós somos, e assim, tomamos o lugar de volta para a “casa”. É o que acontece na história, Bela volta para a vida comum, mas retorna ao castelo porque, mesmo sem saber, estava amando a Fera. Se ela não a amasse, a teria deixado morrer e teria voltado para a sua vida rotineira e chata na cidade.

       4.  O espelho sou eu

       No filme, há um momento em que Gaston e os habitantes não acreditam quando o pai de Bela diz que existe uma Fera fora da aldeia e, por esse motivo, quase o mandam ao manicômio. Então, Bela, para provar que o pai não é louco, se serve do espelho mágico dado por Fera para mostrar a existência do animal. Essa parte é extremamente simbólica pois Bela, ao apontar o espelho a Gaston, mostra a sua verdadeira identidade, ou seja, dá um choque de realidade no “vilão”, comprovando que existe, sim, uma Fera naquele lugar e essa Fera é ela (uma mulher que, agora assumidamente, foge dos padrões).

     Apoiando-se nessa hipótese, ao perceber a existência de uma Fera perto da cidade, o medo toma conta da população, pois fugir dos padrões é assustador para um lugar tão conservador, então o caçador vai ao encontro de Fera para matá-la, tentando eliminar – simbolicamente – o lado revolucionário de Bela.

       5. A dança final

       No final, a briga entre Fera e Gaston mostra a luta travada entre o autêntico e o superficial. Ou seja, quem vai ganhar: a beleza real (Fera) ou o valor pela beleza exterior (Gaston)?

       No filme, o “vilão” quase destrói o monstro, até o momento em que ele o chama de Fera, fazendo despertar no animal a consciência de que ele não é mais uma pessoa má, respondendo: “Eu não sou uma Fera!”. Essa situação, em conjunto da presença de Bela, que aparece no meio da briga, fez Fera enxergar que existia beleza nele desde o momento em que ele dá a Bela, a liberdade. Em outras palavras, ao libertar Bela, ele liberta – simbolicamente – a beleza que construiu no contato com a moça.

      A morte de Gaston é muito simbólica, pois morrem ali todas as preocupações com a necessidade de agradar um padrão que existia em Fera no começo do conto antes de ser transformado pela fada.

      O conto termina com Fera voltando a ser príncipe, que nada mais é do que a sua beleza interior sendo manifestada fisicamente. Bela, nesse momento, descobre que sua Fera interior que estava prestes a ser “domada” não é nenhum monstro, mas algo belo e –agora - bom. Por fim, quando ela olha nos olhos de Fera-Príncipe, ela o reconhece, mostrando que a beleza está na alma, uma vez que os olhos são as janelas da alma. Ao mesmo tempo, ela se reconhece dentro dele, fechado a história com uma dança harmônica entre os dois polos que um dia foram extremos opostos.

      6. Sobre a síndrome de Estocolmo

       Com o devido respeito aos que afirmam a existência dessa síndrome, eu não acredito que Bela seja vítima dela, pois no enredo, tanto do original quanto nas versões Disney, Bela não se deixa ser presa, ela escolhe essa condição para salvar o pai. Durante todo o filme ela quer fugir do castelo, ou seja, ela não gosta daquela situação. Quando a “princesa” ganha a liberdade, ela volta justamente por estar livre, e não pela vontade de querer continuar sendo presa. No fim, Bela percebe que ama Fera porque ela lhe dá liberdade e não por conta de um relacionamento abusivo.

      7. No contexto social: as personagens

       Percebendo a sociedade de hoje, Bela poderia representar a mudança no mundo. Ela seria como aquelas pessoas tentando exigir respeito pelo que são. Pessoas que não querem ser só mais uma na sociedade, seguindo um padrão já batido, como é o caso das três irmãs (ou das três moças que aparecem na Disney). Bela quer ser ela mesma... Outra forma de vermos esse fato é explorando seu lado “espirituoso”, pois enquanto ela lê, ela muda a si mesma, ou seja, ela é uma pessoa que busca constante aprendizado e formas de ser melhor. É por esse motivo que ela consegue equilíbrio com a Fera, pois ela está mudando a si a todo o momento, e consequentemente, mudando o outro e o mundo.

      As três irmãs são as pessoas que ficam presas em um padrão e não conseguem se libertar dele. De acordo com o final do conto original (em que elas são transformadas em estátuas, mas sem perder a consciência), é possível notar o quanto nós somos capazes de ficar presos dentro dos nossos próprios sentimentos negativos - no caso das irmãs, a inveja - para ganhar a liberdade, é preciso transmutar esses sentimentos, ou seja, ”aprender a lição” para pular para outro estágio de evolução. É como aconteceu com a Fera. Ele só ganha a “liberdade” depois de “aprender a lição”, e sair do que eu chamaria de emoção estagnada. Essas três irmãs, portanto, podem representar as pessoas que fazem fofoca, que vivem presas em uma rotina reclamando da vida sem conseguir mover um dedo para saírem daquela situação etc.

      Gaston, a figura machista, pode ser representado pelos “garanhões” que gostam de “caçar menininhas” sem se preocupar com os sentimentos delas ou até mesmo com quem elas são. Tem muito a ver com alguns comportamentos de homens e mulheres na nossa sociedade atual. Podemos identificá-los facilmente pelas ruas, no trabalho e na escola.

Por fim, conseguimos ver em Fera aquelas pessoas que não conseguem descobrir nenhum tipo de beleza em si e nem nos outros, que ficam presas ao superficial, incluindo uma beleza falsificada de bondade: como quando uma pessoa que faz doações todos os dias, mas, por debaixo dos panos, faz barbaridades com seu semelhante. Ela seria todo rompimento de belo na sociedade, tudo que ela julga como não belo, é uma Fera.

       8. No contexto social: O conto

       O conto traz muitas interpretações, isso vai depender do potencial de análise da pessoa e também do seu conhecimento de mundo. Assim sendo, postarei aqui apenas três, mas fique a vontade para contribuir com o seu ponto de vista.

       Podemos ver em A Bela e a Fera, a história de uma moça que foge dos padrões, mas que é criticada e até mesmo perseguida pelos habitantes de sua aldeia por ser diferente. Tendo isso em vista, conseguimos fazer analogia com – por exemplo – algumas igrejas que falam que homossexual/trans/bi/etc são coisas do demônio (Fera) e tentam eliminá-lo, muitas vezes da forma como Gaston tentou, matando-a: seja por “exorcismo”, “cura gay” ou até mesmo com castigos físicos.

       Podemos ver também na cidade e em Gaston, uma pessoa apegada à supervalorização da beleza nas redes sociais, os tão batidos temas como plásticas, beleza ideal, revistas de moda e artistas da mídia que de tão intoxicadas com esse conceito de beleza, precisa conhecer uma beleza mais pura para entender o que é belo de verdade.

       Por fim, podemos até mesmo fazer analogia com o machismo, representado por Gaston. No conto, o “vilão”, tenta matar a liberdade feminina de Bela, representada por Fera. Fatos recentes como o famoso “Bela, recatada e do lar” representam bem o boicote dos homens querendo dar às mulheres um lugar que não lhes fuja do controle.

       9. Conclusão

       É possível notar, portanto, que o conto expressa muito mais do que a ideia de aprender a olhar a beleza interior. Ele diz que todo mundo pode ter acesso à verdadeira beleza representada pela singularidade de cada indivíduo, só é preciso saber olhar para ela, relacionar-se com ela e libertá-la.

       Ele diz também para confiar em quem se é por dentro, na essência, pois muitas vezes as pessoas vão ver em seus desejos profundos (como ser inventora, gostar de ler, etc) ou na sua aparência externa, algo negativo/feio, mas isso não quer dizer que seja verdade. Para mudar esse quadro, é preciso escutar melhor o coração, dançar com ele, entrar em harmonia consigo e perceber o quão bem ele faz a si e o quão bonito ele é, a ponto de não se importar com o que o “conservadorismo” diz. Só assim, segundo esta leitura do conto, é que podemos chegar ao final feliz.    

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